“O meu facão bateu embaixo
A bananeira caiu”
O filme “Mulheres da pá virada” foi gestado a partir de nossas experiências de mulheres capoeiristas, confrontadas durante anos – na verdade, décadas – com relações machistas no meio da capoeira, e tentando entender, contornar e muitas vezes ignorar as violências e discriminações sofridas. Tentamos (tentamos mesmo!) “relevar” até para garantir a nossa permanência em grupos, rodas, eventos, enfim, para poder vivenciar a capoeira que representa, para cada uma de nós, uma dimensão imprescindível da nossa existência.
Não conseguimos. Sofremos decepções, frustrações e isolamento, mas o que pode nos ter parecido um fracasso, se transformou em uma grande realização: contar nossas histórias, compartilhadas com outras manas encontradas nos muitos caminhos da capoeira da Bahia, rompendo com o silenciamento e a banalização das violências sexistas que continuam sendo o cotidiano das mulheres que têm a ousadia de serem capoeiristas. As mulheres da pá virada são capoeiristas de diferentes gerações, mestras, contramestras, professoras, negras, brancas, estrangeiras, regionais, angoleiras ou “da capoeira”. São 12 mulheres com suas diferenças e singularidades que partilham as dores e delícias das suas vivências na capoeira.
Então a experiência passou do singular para o plural e gerou encontros, trocas, diálogos, imagens e narrativas. Nossa maior inspiração nessa construção coletiva foi “uma mulher negra, pobre e da Pá Virada” – segundo uma das protagonistas do documentário -, Ritinha da Bahia, Mestra Ritinha, que faleceu no início das filmagens, após ter tido sua extraordinária e corajosa trajetória na capoeira angola invisibilizada. Através do resgate de suas entrevistas registradas em pesquisa nos últimos dois anos da sua vida e de registros fotográficos, audiovisuais e depoimentos, Mestra Ritinha pôde enfim não só aparecer no filme, como, na verdade, ser a linha condutora do roteiro e a referência que norteou as narrativas das protagonistas do documentário.
Eis o documentário que depois de circular por diversas cidades no Brasil (Salvador, Serrinha, Palmeiras, Brasília, São Paulo, Piracicaba, Campinas, Valinhos, Ribeirão Preto e Santo Antônio de Jesus) e também em algumas cidades do exterior (Paris, Lisboa, Porto e Oakland) ao longo desses últimos sete meses chega agora ao alcance de tod@s que se interessam pela capoeira, pelas relações de gênero e lutam pelo fim da violência às mulheres. O filme já foi apresentado em grupos de capoeira, coletivos de mulheres capoeiristas, universidades, projetos sociais atendendo crianças e adolescentes, colégios, cinemas e espaços feministas, sempre no formato de uma exibição seguida de um debate. Em todas as sessões, percebemos que as histórias que contamos ecoam vivências e preocupações de muitas outras mulheres e também de homens que questionam os formatos machistas e sexistas que se perpetuam e se renovam na capoeira de hoje.
O filme se quer antes de tudo um instrumento capaz de deslanchar reflexões e de abrir um espaço de fala e de escuta sobre temáticas que continuam sendo tabu na capoeira, e fora dela.. A organização hierárquica dos grupos (lideranças e mestres) dificulta as iniciativas das mulheres de falarem sobre a discriminação e, sobretudo, das violências sexistas sofridas pelas mulheres. Na verdade, a opressão é tão forte que no mais das vezes, nós mulheres, temos medo até de propor essa discussão. Sabemos que os homens se apoiam uns aos outros e que quem manifesta veleidades feministas não raro será castigada, discriminada ou mesmo banida. Como aconteceu com uma recente denúncia de assédio que foi mais uma vez silenciada na “comunidade” da capoeira.
Aí está a segunda temática de Mulheres da pá virada: só a união das mulheres torna possível qualquer discussão e ação em prol de uma capoeira que seja de fato instrumento de libertação contra todos os tipos de opressão, sejam de classe, raça, gênero e sexualidade. Nossa proposta nasce de um percurso de resistência e vai no sentido de retomar esse viés libertador da capoeira do qual ela se afasta quando prioriza o prestígio e a promoção de egos assentados em relações de poder e se mostra incapaz de incorporar com respeito no “mundo da camaradagem” toda essa nova leva de capoeiristas que somos nós, as mulheres.
O filme é para ser visto e discutido junt@s, em diferentes espaços educativos, em grupos e coletivos de capoeira, eventos, ou reunindo as manas e manos com quem a gente aprende, ensina, joga, brinca e busca recriar uma tradição que nasceu para resistir à opressão e deve, agora, voltar a ser uma luta de libertação.
“Algo que foi criado para resistir não pode se transformar em instrumento para a violência” (Nildes Sena)