“Não é a capoeira que é machista, é a sociedade”.
“Na capoeira tem tudo que tem na sociedade brasileira”
Essas são algumas das frases que eu tenho ouvido com mais frequência nas conversas e debates decorrentes das denúncias das mais diversas formas de violências machistas que vieram à tona esses últimos anos, depois que se abriu uma brecha na lei do silêncio, implicitamente justificada pela velha e até hoje vigente tradição da malandragem: “O calado é vencedor”.
Essa argumentação pseudo sociológica me deixa perplexa e, na verdade, bastante insatisfeita. Soa como mais um ”Cala a boca”, dessa vez, politicamente correto já que o/a autor/a dessas falas reconhece a existência do problema, porém se livra de toda responsabilidade e de qualquer envolvimento na sua resolução, jogando a peteca para cima, isto é, para “sociedade”. O que preconizam então? Vamos esperar uma mudança social que terá como benefício secundário o fim das opressões e discriminações sofridas pelas mulheres na capoeira? E teremos a mesma atitude paciente, na verdade, passiva com todas as demais discriminações? Homofobia, racismo, classismo…
Além do fato que eu já estou sem paciência e com horizonte de vida mais reduzido em meus 64 anos de idade, dos quais 34 de capoeira, eu tendo a questionar o uso de categorias abstratas, distantes, invisíveis e poderosas como “A Sociedade” em debates que buscam resolver problemas que não podem mais ser adiados, como é o caso dos abusos cometidos por lideranças e figuras de poder da capoeira.
Não nego que o conceito de Sociedade tenha se tornado uma ferramenta incontornável e muitas vezes preciosa para análise dos problemas políticos, isto é, todas as questões que envolvem o viver juntos em qualquer coletivo estruturado por relações de poder. Minha intenção não é de discutir aqui os limites desse conceito, mas para falar a verdade, nunca vi, encontrei nem me relacionei com “a sociedade”, e tenho sérias dúvidas quanto à sua existência. Ora, a reflexão que quero propor aqui é mais concreta e se situa no contexto peculiar da capoeira, que como outros coletivos e instituições, estrutura e legitima relações entre seus membros, e notadamente, relações de violência e opressão de gênero.
Como em outros espaços, sim. Porém, diferentemente de outros espaços, o mundo da capoeira não pode ser considerado como uma simples amostra do que chamamos de Sociedade, uma miniatura ou simples parte da sociedade como o deixaria entender as afirmações “Não é a capoeira que é machista, é a sociedade” ou “Na capoeira, tem tudo que tem na sociedade”. Isso porque a capoeira já nasce como ato de resistência às regras, estruturas e costumes impostos pela dita sociedade (colonial e escravista, na época). Mesmo sendo há um bom tempo já legitimada e integrada às instituições do esporte, da cultura ou da educação, a capoeira nunca deixou de ressaltar e preservar sua peculiaridade e de se afirmar como subversão e luta de resistência. Nesse sentido, aparece como inerente à capoeira destoar dos valores hegemônicos como mostram as gerações de capoeiristas que se engajam de corpo e alma para barrar a apropriação e cooptação da capoeira pelo sistema.
A sociedade é racista: a capoeira é antirracista. A sociedade brasileira está sendo invadida pelas religiões evangélicas: a capoeira se levanta e organiza contra a penetração dessa ideologia religiosa que ameaça seus rituais de matriz africana. A sociedade mercantiliza as práticas culturais: a capoeira defende seu papel enquanto espaço de inserção e convivência aberto aos excluídos dessa sociedade. Não faltam exemplos ilustrando os posicionamentos ativos dos capoeiristas no sentido de marcar seu território próprio. Nós capoeirista, temos nosso próprio mundo “a pequena roda”!
Mundo de cabeça para baixo; herança das lutas de resistência do povo negro; vadiagem (em oposição à ideologia capitalista do trabalho), essa é nossa identidade. O nosso repertório está cheio desse tipo de significados, desde a inversão do corpo até a malícia que é um jogo com/contra as regras e as aparências. Enfim, jogamos, vivemos na “pequena roda de capoeira” em contraste – embora também em relação – com a “grande roda da vida”. E não seria essa “grande roda da vida” o que outros chamam de sociedade? Daí a pergunta: como uma tradição que cultiva e defende suas próprias formas de atuar e se relacionar estaria, quando se trata do machismo, sem outra alternativa a não ser reproduzir o que está “lá fora”?
Sim, sei que se desconstruir é difícil, que o machismo é estrutural (mais recente versão de “a sociedade”), que fomos educados com papéis de gênero que perpetuam a desigualdade e a violência. Mas, você que é capoeira treinou anos para desconstruir seu jeito de andar e se movimentar; trocou o pé pela mão, a mão pelo pé, como diz o corrido! Você aprendeu a reagir a emoções viscerais como o medo ou a raiva, dando uma disfarçada, uma risada, uma mandingada! Você reconstruiu também suas percepções, vendo pelas costas e ouvindo, em meio às vozes cantando e instrumentos tocando, uma sutil batida no arame do berimbau. E hoje, você é um outro corpo, um corpo que se liberou de tantos limites, hábitos e definições prévias daquilo que é possível, bonito, ético ou desejável. Não tenho dúvida de que é esse corpo capoeira que vem há séculos subvertendo a ordem e as relações de poder.
Então está na hora de desconstruir também o machismo, a misoginia, o ego viril inflado, a violência. E estou me dirigindo aqui, não apenas aos homens capoeiristas, às figuras de referência que estão orientando os rumos e os valores da capoeira, mas também a todos e todas aqueles/as que reproduzem ou perpetuam esse machismo, omitindo-se e naturalizando a violência como parte da nossa herança. Desconstruir sua submissão às figuras heroicas dos mestres encoberta pelo respeito à tradição e à hierarquia. Acredito que o caminho não seja tão diferente daquele que você seguiu para se tornar capoeira. Tem que se dispor à mudança, ao esforço, à queda, à vulnerabilidade e a aprender. E à perseverança. Quanto tempo você tem dedicado a esse aprendizado? Você assistiu filmes, leu livros ou publicações na internet discutindo machismo e violência de gênero? Participou de debates, de grupos de reflexão sobre masculinidades? Ou você prefere se esconder atrás do poder insuperável da “sociedade” incorporada em você?
Porque, me pergunto se esse machismo que você não consegue desconstruir não seria, na verdade, um apego a seus privilégios…