O que acontece na roda, fica na roda – será?!

O que acontece na roda não fica na roda, fica marcado na memória, nos corpos e pode ser determinante para a decisão da pessoa ficar ou deixar a capoeira

Os jargões, as frases prontas na capoeira e na sociedade servem muitas vezes para silenciar as opressões. O que acontece na roda não fica na roda, fica marcado na memória, nos corpos e pode ser determinante para a decisão da pessoa ficar ou deixar a capoeira. Uma boa experiência, um jogo bacana, respeitoso, pode criar parcerias para toda a vida. Um golpe maldoso e/ou experiência que tenha acontecido consigo ou outra pessoa na roda pode gerar cicatrizes e feridas difíceis de curar. Não, não fica na roda. Assim como “o que acontece entre quatro paredes” não fica entre quatro paredes e “briga de marido e mulher” a gente mete a colher.

Atualmente, inclusive, os registros das rodas em eventos têm sido utilizados no processo judicial na defesa dos homens acusados da agressão, como prova de que são “aceitos” e “reconhecidos” na comunidade de capoeira. Então, para aquelas pessoas que pensavam que ir em evento onde tem mestre estuprador “não dá nada”, é bom saber que a sua presença está sendo utilizada nas diversas páginas de fotografias da defesa do agressor, dando continuidade a ideia perversa de que agressões sexuais neste país acabam em pizza.

O feminismo e os eventos relacionados ao Dia Internacional da Mulher vêm para romper este fluxo do machismo, denunciar as práticas de opressão, dar voz e espaço para as mulheres. E quando se diz mulheres, se diz diversas, mulheres e dissidências do campo e da cidade, das diferentes classes, raça/etnia, escolha sexual… Então quero contar aqui algumas experiências vivenciadas nos eventos deste ano. Há que reconhecer que muito já foi feito, conquistas que vieram das lutas das mulheres até chegarmos aonde estamos, mas a estrada é longa, o importante é caminhar, porque quando a gente pensa que acabou, na curva vê que tem mais um tanto para andar.

Então, para aquelas pessoas que pensavam que ir em evento onde tem mestre estuprador “não dá nada”, é bom saber que a sua presença está sendo utilizada nas diversas páginas de fotografias da defesa do agressor

Vou, com coragem, correr o risco da má interpretação de minha intenção e propósito e fazer recorte de gênero, idade e raça/etnia, de classe não consigo caracterizar, talvez seja similar entre as pessoas que vou descrever. Sei, contudo, que estes elementos são limitados, pois uma pessoa é complexa, não se restringe a eles.

Situação 1: Ele, um homem negro retinto, de uns 40 anos, com roupas brancas, calça e camiseta. Ela, uma jovem branca, de uns 20 anos, de vestido branco. A roda de samba formada por mulheres se organizou. Ela cantava lindamente no pandeiro, chamando o coro que era respondido por vozes de mulheres e alguns homens presentes. Dentro do tempo delas, no ritmo delas. Muitas capoeiristas e a ideia de que poderia ter uma vadiação de capoeira. Então ele entrou na roda com o berimbau. Tocou um pouco do samba e pegou o canto. O canto não voltou para a mulher. Somente por uma vez ela puxa um corrido de capoeira. Atabaques soaram tocados pelos homens. A roda passa a estar sob o comando deles, com a participação das mulheres. Só que este não era um dia igual aos outros, era o primeiro encontro de mulheres daquele coletivo, aberto ao público e a todas as pessoas, é verdade, realizado na semana relacionada ao Dia Internacional da Mulher. Na chamada do evento estava descrito que o protagonismo seria delas. Todas as pessoas se divertiram. Então, está tudo certo?!

Situação 2: Ele, um homem negro retinto, de uns 30-40 anos, com guias. A Marcha Mundial das Mulheres que ocorreria na cidade se organizou. As mulheres presentes que tocavam berimbau estavam com este instrumento, ou estavam com outro instrumento – pandeiro, agogô. No ritmo delas, no jeito delas. Ele chegou. É reconhecido por ser bom tocador. É reconhecido por ser bom cantador. Ele lidera outras marchas, sempre motivando as pessoas. Mas desta vez, ele observou. Quando convidado tocou o berimbau, o pandeiro. Respondeu ao coro. Outros homens acompanhavam a marcha com a capoeira, mas foram elas que cantaram. Elas protagonizaram. Eles acompanharam. Todas as pessoas se divertiram.

Com estes relatos quero refletir o quanto incomoda quando a mulher está no canto, está no instrumento. Como alguns homens ainda se incomodam quando não estão no comando. E de uma forma sutil ou escancarada eles querem assumir o comando novamente.

Situação 3: Licença é fundamento – peça licença pra chegar

Ele, um homem negro de pele clara, de uns 30 anos, denominado aqui de “X” para facilitar o entendimento. Ela (gunga) uma mulher branca, de 40-50 anos, junto com mulheres brancas e mulheres negras, de pele clara e escura entre 20-50 anos.  Ao final da Marcha a roda se formou com as mulheres no berimbau e outras mulheres compondo a bateria. A proposta é que elas ocupassem este espaço, afinal “eles sempre sabem” tocar e/ou cantar. Homens estavam presentes, acompanhando, com idade entre 25-60 anos, um afro-indígena descendente de pele escura, brancos, além de um adolescente de pele escura. Um homem, já com bastante idade de capoeira, mais velho que “X”, pediu licença ao gunga e tocou o pandeiro. Então “X”, sem licença, entrou na roda, aos pés do pandeiro e começou a se rolar no chão.   Ninguém estava jogando, ninguém estava esperando para jogar… “X” era uma pessoa conhecida, então o gunga esperou, não interveio. O pandeiro explicou diretamente para “X” que não era adequado fazer assim na roda de capoeira. “X” saiu e se sentou na roda.

O pandeiro foi conversar, “X” argumentou que estava batendo cabeça e que isto fazia parte da capoeira. Disse que, ele “X”, era integrante da religião de matriz afro-brasileira, assim como a capoeira é de origem afro-brasileira, e que o pandeiro era uma pessoa branca que não sabia de nada. A roda continuou se encaminhando para o adeus, adeus. Ninguém mais estava no Largo, hora de ir para casa. Então durante o último jogo, enquanto duas pessoas estavam jogando, “X”  invadiu a roda e voltou a se rolar no chão na frente da bateria. O gunga parou a roda. Agradeceu a todas as pessoas que estiveram ali no Dia Internacional das Mulheres e todas aquelas que trataram com respeito a roda que ali aconteceu, porque a roda podia ser na rua, mas tinha/tem gunga e o princípio, o fundamento universal é sim, pedir licença, respeito é fundamento. Explicou que a luta é contra a opressão, é pelo direito das mulheres, mas também do povo negro, do povo indígena, do trabalhador que é explorado. Que todas as pessoas voltassem em segurança para as suas casas.

“X” insistiu na discussão. E no seu lugar de verdade, enquanto integrante da religião de matriz afro-brasileira. Achando que poderia chegar como chegou na roda e que teria aprendido isto na capoeira, citando o nome de mestre local, o que causou estranheza entre os presentes. A veracidade da afirmação foi questionada pelas pessoas presentes, visto que respeito aos mais velhos, respeito ao rito da capoeira é fundamento. Na conversa restavam algumas mulheres e homens mais velhos que o sujeito, além do adolescente. “X” contrariado, jogou cerveja em todas as pessoas e foi embora. Estava bêbado, alterado com alguma droga. Ninguém se machucou. Então, está tudo certo?!

O comportamento de virilidade na capoeira é o processo que se mantém ao longo de muito tempo, quando mulheres para ter lugar de reconhecimento tinham que assumir um comportamento “masculinizado”

Com estes relatos quero refletir o quanto incomoda quando a mulher está no canto, está no instrumento. Como alguns homens ainda se incomodam quando não estão no comando. E de uma forma sutil ou escancarada eles querem assumir o comando novamente. Quando vem de forma sutil é a repetição da rotina, quando a mulher participa e o homem protagoniza, porque afinal ela não sabe, não está preparada. Como é rotina, pode não incomodar a muitas mulheres. Até que tenha uma que seja mais “viril” para o enfrentamento e venha assumir a posição do canto, como na “situação 1”, será? Será que precisa ter esta liderança? Que como vacas de manada temos que esperar o toque do berrante para seguir o curso?

Quando compartilhado o ocorrido na “situação 3”, o retorno é que a mulher deveria ter agido de forma diferente, leia-se mais “viril”. O que no final das contas é mais uma forma de agressão, quando pensamos nas etapas da violência – primeiro o abuso e depois a culpabilização. Foi estuprada porque estava de saia curta, porque bebeu demais, etc. O comportamento de virilidade na capoeira é o processo que se mantém ao longo de muito tempo, quando mulheres para ter lugar de reconhecimento tinham que assumir um comportamento “masculinizado”. Creio que repetir a violência física para solucionar os problemas não modifica o principal desta estória que é o machismo e talvez o conflito identitário envolvido. Outra questão é saber qual o papel que tem a mulher na condução do trabalho. Precisa repetir os passos da virilidade masculina truculenta, sendo este o único lugar, o lugar “aceitável”, exclusivo na roda? Não é nesta a roda de capoeira que acredito.

Importante destacar que a roda sendo na rua, tem que esperar todo tipo de gente, certamente. Porém, no caso em tela, da “situação 3”, outros dois homens que também estavam bêbados, desconhecidos, aparentemente moradores de rua, não invadiram a roda, entenderam o que se falou, tiveram respeito. Ao final estes dois homens, negros de pele escura, vieram conversar, até agradecer o posicionamento do gunga. O abusador era o conhecido, que se dizia capoeirista. E isto é extremamente relevante. É um retrato do machismo ainda vigente no meio da capoeira. De um homem que ao ver mulheres no berimbau se acha no direito de assumir o espaço, como bem entender. O álcool não é justificativo para o comportamento só é um catalisador da índole e dos pensamentos que o sujeito carrega dentro de si.

E como diz, Mestra Samme, o problema do machismo, do estupro, dos abusos é um problema deles, dos homens.

Observem que nos episódios relatados também vemos homens que conseguem andar juntos, conseguem entender a importância das mulheres nos espaços e apoiar para que estes espaços sejam também ocupados pelas mulheres. Avançamos. E como diz, Mestra Samme, o problema do machismo, do estupro, dos abusos é um problema deles, dos homens. Na “situação 2” homens acompanharam a Marcha, sem a necessidade de buscar protagonizar, na escuta, no apoio da atividade. Já na “situação 3” além de participar da roda, eles interviram junto com as mulheres na situação. Deram limites aos seus iguais, não se escondendo no silencio ou atrás de discursos, como bem descreveu uma camarada.

Aos incomodados pelo protagonismo das mulheres, não se assustem, vai continuar incomodando. Nossa raiva contida e o silenciamento que ao longo dos anos tem sido motivo de doenças, agora se transforma em textos, em arte, em grito. Que nos chamem de “bocudas”, que descredenciem nossos feitos, nossa sabedoria, nossa trajetória, sempre foi assim. É mais do mesmo! Até que mude. Até que se acorde do período adormecido e se vá para outro estágio de relação entre as pessoas, porque a bela, a adormecida, já foi pra guerra faz tempo.  

Ana Paula Fagundes,

integrante do Coletivo de Capoeira Angola Gira Ginga, PoA, 12/3/23