NINGUÉM SOLTA A MÃO DE NINGUÉM – (É ESLOGAN D@s OPRIMID@s, NÃO DOS OPRESSORES!) por Christine Zonzon
Foi agora que cheguei
Venho me apresentar
Sou Marias 12 homens
Maria do Camboatá
Salomé endiabrada
E tantas outras marias
[….]
(Ladainha de Gabi Conde)
“Ir em evento de Mestre pedófilo é apoiar a pedofilia?”. Esse questionamento proposto sob a forma de uma enquete nas redes sociais prometia abrir um debate sobre a cumplicidade da comunidade da capoeira com a violência de algumas das suas lideranças. E recebeu muitas respostas. Só que em algumas delas, o ampliar da pergunta para os casos de abusos contra as mulheres “Ir para evento de mestre estuprador é apoiar o estupro?” acabou causando incomodo e tensões.
Acreditamos que esse episódio pode abrir oportunidade para que mulheres e homens, capoeiristas ou não, reflitam melhor sobre questões relacionadas com o tema da cumplicidade com a violência sexual na capoeira. Como contribuir para a desconstrução da cultura do estupro? Como agir para não compactuar com a manutenção e impunidade dos abusos?
Sabemos que tanto a pedofilia quanto os estupros e abusos contra mulheres, jovens ou adultas, remetem a um mesmo fenômeno estrutural que é o machismo. A dominação exerce-se através da violência sexual, fazendo do outro um objeto, seja ele ou ela criança ou adulto/a. Na capoeira como em outras “comunidades”, os abusadores aproveitam-se da sua influência e do seu poder, muitas vezes associados à posição de mestre ou professor, e dos laços afetivos que têm construído com suas vítimas.
Lutar contra essa violência é um desafio enorme, urgente, que só passou a ser uma pauta explícita na capoeira há uns poucos anos, após denúncias públicas de casos de estupros e de pedofilia envolvendo mestres. Essa luta só conseguiu vir à tona e ganhar força graças à coragem de mulheres que enfrentaram retaliação, ameaças, expulsão de seus grupos e outras violências. Mulheres que falaram por elas e por quem não pôde falar!
Nesse protagonismo, a defesa da integridade das crianças, adolescentes e jovens foi assumida pelo Movimento Capoeira Acolher e a luta contra as diversas formas de opressão das mulheres na capoeira pelo Coletivo Marias Felipas. Esses dois coletivos ecoaram as vozes das vítimas –mulheres, crianças, jovens, homens trans e mulheres trans – e ofereceram acolhimento. Apoiaram quem resolvia denunciar os abusadores, produziram material informativo sobre pedofilia e violência machista, se uniram em várias ações e têm trabalhado para expansão e potencialização em rede reunindo outros movimentos dedicados ao combate à violência e à opressão machistas na capoeira.
Para avançar mais nessa erradicação da violência, uma das questões mais complexas que precisa ser enfrentada é a da cumplicidade e da blindagem dos agressores por parte de seus pares e da dita “comunidade da capoeira”. E é justamente o tema que foi lançado na enquete referida no início desse texto. O fato é que a violência só consegue se sustentar e perpetuar graças à omissão. Os abusos são silenciados, desconfia-se das narrativas das vítimas dando crédito às versões e justificativas dos mestres denunciados. Sim, porque são figuras de respeito, fizeram muito para a capoeira e para nós! Ou como se costuma dizer em nossos grupos de capoeira, são a nossa família, nossos pais! É nessa simbologia familiar que o respeito aos “mais velhos” e a omissão diante da violência se confundem e que a cultura do estupro se banaliza com falsa roupagem de tradição, ancestralidade e resistência.
Em nome de uma ética capoeirística, damos assim mais fôlego para a institucionalização dessas violências e garantimos a impunidade dos agressores.
Sem dúvida, há quem “blinda” os abusadores porque também abusa ou abusou de seus/suas alunos/as e receia que a onda de denúncia o alcance. Mas a omissão e até mesmo a defesa dos acusados provêm, no mais das vezes, de quem não quer ou não consegue destituir suas referências na capoeira da sua aura heroica. Parecem temer que junto com a queda do mestre amado e venerado, seja a capoeira toda que desmorone, abalando sua própria identidade, sua construção existencial enquanto capoeirista.
Por fim, é preciso dizer que mulheres também caem nas armadilhas da cultura do estupro. Mulheres que defendem de unhas e dentes os abusadores, exatamente pelos motivos evocados acima. Em vez de se unir com quem defende suas manas, filhas ou filhos, vítimas de violência, se engajam em uma guerra contra as “feministas”, propiciando um espetáculo apreciadíssimo dos machos que assistem de camarote. A tarefa de refletir, compreender, e nos desconstruir é de todos e todas nós, pois o machismo estrutural atravessa homens e mulheres. Todos, todas e todes!
A capoeira não está ameaçada pelas ações de denúncia da violência machista que se estruturou nela, junto com as heranças coloniais. Na verdade, quem sofre ameaças são as vítimas e as pessoas que lutam ao seu lado. A capoeira só tem a ganhar com as pautas de gênero em prol da igualdade, da inclusão e da luta contra todas as opressões. Ninguém solta a mão de ninguém é slogan dos oprimidos, não o dos opressores.
Agradeço a todas as manas e os manos que estão apoiando essa luta, fazendo com que ainda seja possível acreditar e amar a arte da capoeira.
Quando eu to com essas manas e essas manas tão mais eu
nós encosta costa com costa , colega veia , da nossa vida só Deus !
quando to com essas manas , eu já to com quem eu posso
tira couro de maroto , mermã, maroto não tira o nosso !
Quando to com essas manas a trincheira é noite e dia
quem não pode com esse pote mana veia , não se enfeita com a rodilha …
(ladainha de Mestra Samme)