Cadê meu berimbau,
Cadê o meu berimbau, amigo meu.
Mas cadê meu berimbau, amigo meu
Que você me prometeu, amigo meu.
Na roda da capoeira angola quem comanda os trabalhos é o berimbau, principalmente o berimbau gunga. Para o gunga funcionar alguém tem que tocar, então quem comanda a roda não é o berimbau, é quem está no berimbau. Quem está com o berimbau na mão, tem a autoridade da coordenação daquele espaço. Com certeza tem que ter habilidades para estar naquele lugar, que vão além do cantar e tocar, tem que ter sensibilidade de perceber o jogo, observar o entorno, ter visão periférica. É um lugar majoritariamente ocupado por homens. Será que a mulher não tem esta capacidade?
Amiga minha disse pra escrever, em tempo de pandemia. Em tempo de pandemia. Aproveito o tempo de recolhimento e estudo sobre a capoeira, ainda perplexa por ter presenciado mulher ser derrubada na roda, dias após de ter sido reconhecida como contramestra. Um golpe sem o menor propósito que poderia machucá-la. Depois, fico estarrecida com denuncia recente de violência sexual praticado por mestre. Homem que tem o gunga e faz isto com a autoridade que tem. Estes fatos ocorreram em locais distantes, mas mostram o quão estruturado é o machismo, que passa por cima de qualquer outro valor.
Sigo com o coração partido, com a estrutura abalada, mas sabendo que outra estrutura deve ser destruída. Confirmo que a mulher sempre esteve na capoeira. Nos golpes ágeis capoeiristas comandaram rebeliões, como Maria Felipa. Lembro de escutar ou ler que mulheres donas das bancas de quitutes disfarçavam a roda quando a polícia se aproximava. Lembro nomes de mulheres capoeiras que não se deixavam subjugar pelo companheiro ou pela polícia. Na assistência ao coletivo ou organização dos trabalhos mulheres contribuíram para que grupos se mantivessem ao longo do tempo. No jogo, no toque, no cantar, a mulher estava lá.
Descubro o véu e vejo hoje 23 mestras (uma in memorian) e 45 contramestras de capoeira angola, mulheres que estavam lá, há trinta, há quarenta anos… mas mesmo assim não foi fácil localizá-las (1). Das mestras vivas (60%) iniciaram capoeira na década de 80 as outras 40% na década de 90. Levaram décadas (média de 27 anos) para o reconhecimento, enquanto jovenzinhos são reconhecidos como mestres. Elas têm hoje em média 50 anos. Das contramestras 62% iniciaram a capoeira na década de 90, 22% em 2000 e 16% na década de 80. Foi em média 20 anos até o reconhecimento e têm hoje em média 42 anos de idade.
Por autocritica ou preservação muitas mulheres nem querem o reconhecimento e outras tantas abandonam a capoeira. Machistas impõe suas frustrações através da força contra o corpo da mulher amparados em uma máxima que diz que “se resolve na roda”. Os que “não aceitam perder para mulher” apelam para agressão quando ela está se destacando em algum ponto, jogando bem, cantando bem, se articulando de alguma forma. Tem ainda os que agridem por terem ouvido um “não quero ficar com você”, pensam que nossos corpos são deles. Apesar de criticados, a covardia da humilhação e aplicação de movimentos para machucar persiste.
Sempre tentaram apagar ou diminuir a presença da mulher: é a “mulher-macho”, mas não capoeira que joga bem, a “que não era capoeirista, pois não tinha grupo”, era “a arruaceira, não capoeira”. Ou ainda é a “encrenqueira” ou a “cobra traiçoeira” que deve apanhar, quando não se enquadra no papel de benevolente e submissa. Até em cantigas isto se repete. Fato interessante, amiga minha, é que a mesma crítica não é feita aos homens, comportamentos de valentia e namoro realizado por homens são considerados como valores.
Olhares de desdém já olharam o corpo da mulher, o meu corpo, o meu movimento, as minhas dificuldades, fraquezas e disseram: “não dá pra capoeira”. Mais um machismo que sai da boca de alguns. A vida é como um caleidoscópio. Em cada giro se vê por um aspecto, uma cor, se monta e remonta uma história. Enquanto fundamento o jogo deve ser de diálogo entre as pessoas e a capoeira é para todxs, como dizia Mestre Pastinha, “para homem, meninx e mulher”. Capoeira bebe do discurso da história de libertação dx povo oprimido, por meio dela indivíduos nesta sociedade, trabalham seus bloqueios em relação ao corpo (movimento, canto, voz), ao lugar de estar político, ou a busca de melhor relação com os outros seres.
Dizem que capoeira é ancestralidade, reconhecer que o que tem hoje é resultado da caminhada de outros e respeitar esta caminhada. Há quem conceitualize ancestralidade como o que veio antes de todas as pessoas, de tudo, ancestralidade como sendo a natureza. Ah, e ela é bela e diversa! Mas até isto o ser humano distorce. Olha a sociedade das abelhas e enxerga hierarquia como o poder de um sobre outros e não como divisão de papéis, necessários para o coletivo. Interpreta as relações na natureza como forma de naturalizar a opressão.
Impregnado pelo egoísmo, cego pelo poder, o ser humano se afasta da natureza. A pandemia é um alarme desta desconexão. Já sabíamos que ela chegaria. Aviso teve. Só não sabia que seria agora, isto não sabia. É momento pra rever a forma como lidar com o planeta e as relações entre pessoas. Na cosmovisão indígena montanha, água, pedra, ser humano tem personalidade e se relacionam, fazem parte da natureza. Aí quando a gente fala com os bichos, com as plantas, com as coisas animadas e inanimadas, nos chamam de loucas.
Tantas pessoas morrendo e tantas outras se aglomerando “dando de ombros”, pensando só no seu umbigo e deixando o vírus fazer o seu trabalho. Por isto, enquanto assim for, outras pandemias virão…para destruir o individualismo e a prepotência sobre a natureza. Por sorte e luta outras rodas já estão aí, as rodas de vida, das relações humanas com o planeta e rodas da capoeira. Não basta trocar quem está no gunga, amiga, tem que rever a hierarquia existente na capoeira, construir relação igualitária entre pessoas, colorida pelas diversas etnias e escolhas sexuais, bélica contra o sistema dominante excludente, mas brincante na roda.
Quem vive de promessa é santo, o berimbau não foi dado por nenhum camarada. Nada veio de graça. O berimbau foi conquistado por aquelas que vieram antes enfrentando todas as mazelas do que significa ser mulher na capoeira. O chão que piso já foi trilhado e a terra já foi preparada. Faço reverência para quem me antecedeu. O berimbau foi tomado por aquelas que antecederam e agora é firmar o toque, pois muitas outras virão, vem junto, amiga minha.
(1) levantamento “Quem são e onde estão as mestras e contramestras da Capoeira Angola?”, realizado por Ana Paula Fagundes e Cristina Olivera.
Disponível facebook em 13/05/2020.
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Maria Chiquinha é mãe, bióloga, praticante da capoeira angola enquanto arte e educação que inclui as pessoas, as ajuda a crescer e superar limitações, enquanto um movimento político de resistência e luta contra a desigualdade e opressão.