Idalina, minha nêga: dona de si e do próprio coração

Distrito da Sé, Baixa dos Sapateiros. Capoeira que é capoeira sabe os lugares que guardam histórias de capadócios, valentes, desordeiros, incorrigíveis. Cenários onde a demonstração de valentia e habilidade com a navalha ou a faca de ponta estão celebrizados na memória e nas canções. Foi ali que a navalha “ligeira ligeira, paraná” de Maria Joaquina deixou uma cicatriz profunda de 14 cm no rosto da desordeira contumaz Antônia Cecília, vulgo Rollinha. Também ali se via o “theatro improvisado das façanhas de Lúcia”, desordeira habitual. Sem falar de Juventina, que quebrou no pau o pobre Isaías Horácio. Mas não é sobre elas que este texto quer falar, apesar de eu conhecer muitas capoeiras, mulheres incorrigíveis, dos tempos em que a capoeiragem comia solta nas ladeiras da cidade Bahia. 

Este texto é sobre uma capoeira específica. Uma que, de tanto tirar o sossego de brigões e desabusados, quase foi apagada da história. Parece castigo. Tem sido descrita como uma mulherzinha dessas que só se acha em manual de feminilidade burguesa, nada a ver com as mulheres do povo, que subiam e desciam ladeiras de São Salvador, na ginga cotidiana da luta por (re)existência. Este texto é sobre Idalina.

Quem é que não conhece pelo menos um causo da Capoeira que envolva a donzela em perigo a ser resgatada pelo valentão mais habilidoso? Ou aquela menina pura, que não se mexe nem tem vontade própria, esperando o herói que a leve? Os capoeiras adoram contar suas façanhas de disputa por mulheres, como se elas não pudessem resolver suas próprias contendas, ou não tivessem escolha para além de serem prêmios da “força” masculina. Sem falar de quando elas próprias disputam seus homens, ou eles não podem ser descritos como objetos de desejo feminino? Ciúme foi estopim de muita briga famosa por aí. Pedro Mineiro que o diga. Aliás, ciúme e desejo:

Olá, Olá-ê, eu quero ver Idalina

Olá, Olá-ê

Idalina minha nega

Dona do meu coração

Eu vou lá na casa dela

Vou pedir a sua mão

Olá, Olá-ê

Eu quero ver Idalina

Olá, Olá-ê

Eu indo na casa dela

Levo o berimbau na mão

Se o pai dela não aceitar

Ele me disser que não

Vou jogar a capoeira

Me tornarei um valentão

Olá, Olá-ê

Eu quero ver Idalina

Olá, Olá-ê

Eu me tornando um valentão

A coisa vai ser ruim

Vou roubar a Idalina

Vou trazer ela pra mim

Olá, Olá-ê

Eu quero ver Idalina

Olá, Olá-ê

Se Idalina recebeu ou não a visita de valentão, não se sabe. O que eu sei é que dificilmente aceitaria tal posição. Pela ousadia, quebraria o sujeito no pau. Conhecendo a filha, seu pai não se meteria entre ela e o desavisado. Sendo daquelas que não levam desaforo pra casa, Idalina certamente não engoliria esse desaforo. Desordeira conhecida do conhecido Distrito da Sé, fora presa várias vezes nas décadas de 1910 e 20, e deixava os guardas civis e praças de polícia desconcertados. Certa ocasião, lutou sozinha com mais de 5 de uma vez, como se conta de outros capoeiras. 

Idalina já andava pelas quantas com a tal de Maria Joanna. Todo mundo sabia que ela vivia falando mal de Firmina, companheira de Idalina. Um dia, Maria Joanna tanto insultou Firmina que a nossa desordeira prometeu lhe dar uma lição. Para todo lado levava sua faca de ponta, “iê, que é de furá”, e não temeria usá-la. No dia 1º de agosto de 1917, por volta das 17 horas, as duas se encontraram em frente ao Armazém do Saldanha, e Idalina não perdeu a chance de defender a honra de sua camarada: entrou em luta com a desafeta e a feriu com sua faca. Para apartar a briga, chegou o guarda civil de nº 233. Mas Idalina não se entregou e passou a lutar também com ele, que gritou por reforços. Vieram em seguida os de nº 191, 165 e 210, além de vários praças de polícia. Todos se engalfinharam com a valente, que não arregou e lutou com todos de uma vez.  A prisão foi efetuada, mas Idalina, “minha nêga”, impôs dificuldade aos representantes da lei. Foi conduzida à Casa de Correções e respondeu por lesões corporais, como tantos capoeiras do período. 

Sua história não é a de alguém que espera na janela o valentão (quase um príncipe encantado dos contos de princesas brancas), mas a história de uma mulher que não pestanejou em demonstrar a própria valentia e habilidade, como tantos desordeiros do passado. E ainda por cima para defender outra, sua companheira. E ao ser interpelada pela polícia, que desde os tempos imperiais é instituição de perseguição do povo pobre e preto, defendeu-se também na luta corporal. Diante da quantidade de casos guardados na memória em que se fala de capoeiras subjugando dois, três, quatro, cinco de uma vez, não resta dúvida que a canção sobre a tal “Idalina-prêmio” é injusta com Idalina-incorrigível. Ela é na verdade aquela que quando é de manhã, chama pro jogo, não espera, sai na frente e vai andando. Idalina é capoeira, não fica parada a espera de nada. Ela segue e luta. Iê, viva Idalina, camará!

#euseiquefoivocêmestre

#caladasnuncamais

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Paula Juliana Foltran, ou Ju, é capoeira, historiadora e feminista.

Texto elaborado com base na Tese: FOLTRAN, Paula Juliana. Mulheres Incorrigíveis: desordem, capoeiragem e valentia nas ladeiras da Bahia (1910-1920), Tese de Doutorado, Departamento de História, Universidade de Brasília, 2019. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/35969

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