Vem jogar mais eu mana minha… !

25 de novembro: luta feminista

Consciência negra: luta antirracista

Roda de capoeira: Espaço da vadiação e do encontro entre diferenças, aprendizagem, ancestralidade

Contramestre: Liderança e tradição masculina

Contramestra: mulher e liderança! Categoria ainda não registrada nas referências do mundo da capoeira, talvez inconcebível.

Uma mana: mulher, sororidade

    Nesse pequeno relato sintético, estão configurados os elementos múltiplos com os quais irei tentar nesse texto dar sentido a um acontecimento:

   No dia 25 de novembro, dia internacional de combate à violência contra a mulher, em uma roda de capoeira organizada por contramestra Brisa do movimento Mulheres do Mar em homenagem ao mês da consciência negra e à luta pela igualdade de gênero, uma mana foi agredida intencionalmente pelo seu parceiro de jogo, um contramestre, com um golpe que a deixou desacordada e, conforme relataram os/as capoeiristas presentes, poderia a ter matado.

    O curso da vida tem complexidades, as categorias não permanecem quietinhas em seus lugares. Pelo contrário, uma vez encarnadas nas pessoas e nas interações, elas se imbricam e perdem sua nitidez. O que estava em oposição pode se confundir e o que apresentava semelhança passa a se opor. Por isso, entre as inúmeras leituras que seguiram a denúncia desse ato de violência nas redes sociais dos/as capoeiristas, muitas tentaram (de forma problemática, na minha opinião) explicar ou julgar a situação conservando os rótulos e as classificações identitárias que orientam certas posições e ações políticas.

    Vimos as discussões, virtuais e presenciais entre mulheres que se mobilizaram em torno da denúncia da violência sofrida por nossa companheira, se direcionarem para o recorte étnico-racial. O principal dilema foi gerado pelo fato de se pensar os dois principais protagonistas como duas vítimas. A mulher – que por pouco não perdeu a vida – e o agressor, que por ser um homem negro, pertenceria de direito a essa categoria (vítima). Li e ouvi muitos comentários nesse sentido: não podemos culpar, julgar, denunciar Contra mestre Brasa (sim, aí vai o nome dele) porque não acreditamos no sistema, na polícia, na justiça racista que só reforça a exclusão e a criminalização da população negra. Pronto! O que faremos então – pergunto? Só iremos denunciar a violência de gênero se o agressor for branco? Uma nova versão da Lei Maria da Penha? Isso vale também para medida judicial de proteção? E para pais que não pagam a pensão? Sim, porque a punição pode ser a prisão…

    Levando essa reflexão mais à frente, pois confesso que o tema me deixa muito aflita, certamente por já ter sofrido diversos tipos de violências machistas, lembrei de outro crime que mobilizou a comunidade da capoeira há algumas semanas apenas: o assassinato de Mestre Moa. Assassinato  político, como se empenharam a demonstrar as vozes que com razão exigiam tal reconhecimento e pediam justiça. O fato do assassino ser negro, ele também como Brasa e como o próprio Mestre Moa, embora por vezes fosse evocado nas falas (como fato lamentável) não criou nenhum impasse na identificação do acontecimento. Isso foi um crime político racista (e foi mesmo! não tenho dúvida). Se houve contestação desse caráter (político e racista) por parte de alguns capoeiristas que argumentaram que não se podia misturar política e capoeira, foi rapidamente descartada pela força das mobilizações que se sucederam nos dias e semanas que seguiram.

    Reconheço que somos seres contraditórios, em processo, muitas vezes confusos ainda mais com a complexidade e a intensidade das questões com as quais nos deparamos na atualidade. Porém, é importante perceber que essa nossa confusão pode encobrir e alimentar as formas de opressão as mais cruéis porque invisibilizadas ou naturalizadas. Estou falando da opressão da mulher na capoeira.

    A agressão sofrida por Luana na roda de capoeira é um crime. É um crime sexista. É político por não se tratar de um caso isolado mas sim de um sistema de opressão machista profundamente incorporado na tradição da capoeira. Portanto, não pode ser tratado como incidente singular, nem (muito menos) imputar a violência à nova geração de capoeirista, supostamente mal preparada ou desrespeitosa da tradição, como tentaram insinuar alguns mestres “mais velhos” e tão machistas quanto ele.

    Enquanto mulher e capoeirista “mais velha”, tenho sofrido e presenciado muitas agressões sexistas na roda de capoeira desde a minha primeira experiência de jogo (em 1989) quando o mestre me chutou a cabeça com joelhadas sucessivas. Eu estava totalmente desorientada, impotente, em pânico. Naquele dia, as companheiras me vendo chorando no vestiário, só puderam me recomendar que num caso desse, eu deveria ir para o pé do berimbau e finalizar o jogo. Trinta anos depois, creio que está em tempo de as mulheres construírem juntas outras armas e respostas quando uma de nós é agredida, humilhada, ridicularizada, assediada…na roda de capoeira.

Juntas!

    No texto que Luana escreveu relatando a agressão sofrida, ela interpela Brasa, o agressor e pergunta se ele também chutaria uma mulher branca. Posso responder: sim! Brasa tentou me agredir dois anos atrás no Seminário de Salvaguarda da Capoeira. Tenho amigas capoeiristas  brancas e negras (e japonesas, indígenas também!). Todas me contaram histórias de violência sofrida na capoeira.

    O universo da capoeira não admite que mulher alguma ocupe um espaço de capoeirista, no sentido pleno do termo. A mulher (branca ou negra, gringa, sertaneja, lésbica, hétero, doutora, operária, mocinha ou coroa, enfim, as mulheres…) podem ser aluna nova; elas podem ser objeto sexual, podem até ser colaboradora reconhecida, mas se não se contentarem com nenhum desses lugares, se essa mulher for feminista, se se atrever a ser capoeirista, vai apanhar ou ser excluída.

    Pensar as interseções entre raça e gênero é necessário. Significa perceber o quanto as categorias de subalternidade se somam e atravessam. Ser mulher negra, mulher branca, homem negro ou homem branco na capoeira certamente implica em experiências, posições e perspectivas diferentes. Porém não possibilita elaborar uma escala de opressão nem pressupor da experiência de ninguém, muito menos ainda justificar que a violência seja perdoada.

    De fato, vale se perguntar quem se beneficia da desunião das mulheres? Algum palpite?

    Outros movimentos de luta e resistência, como o movimento LGBT que conseguiu alcançar grande visibilidade e conquistas no Brasil e no mundo, souberam acolher suas diferenças e tensões, raciais e outras mais como gênero e sexualidade, sem abrir mão da união (que como sabemos faz a força). Quando a luta é contra a homofobia ou o genocídio da população trans, tod@s identificam que a causa é comum.

    A desunião das mulheres é tão enraizada historicamente quanto a sua opressão. Os homens, por sua parte, sabem unir-se em prol da defesa do seu lugar de privilégio, deixando suas diferenças em segundo plano. São “pares”. Já repararam que não existe forma feminina para esse termo? Ou melhor dizendo, não existia, até que a luta feminista promova a nossa “sororidade”.

    Em nossa luta contra a violência sexista na Capoeira (e no mundo de fora) para não serem dominadas e cooptadas mais uma vez, urge repensar as nossas experiências e pautas comuns, nossa sororidade.  Pois, como vimos nesses últimos dias nas reações à denúncia da violência sofrida por Luana, homens capoeiristas (brancos ou negros) se abstiveram de comentários, ou quando o fizeram, a maioria (sei, houve exceções) não evocou dimensão política do crime. Falaram até em respeito pelo ser humano!!! Eu que achava que tinha deixado de existir essa categoria eurocêntrica, ainda mais na capoeira e na fala de homens negros!

    Enquanto mulher capoeirista, sinto-me identificada com as manas que sofrem todo tipo de violência simbólica ou física. O que rege a minha identificação é o gênero. Igualmente, não fez diferença para mim o pertencimento étnico dos homens que me agrediram na capoeira ou alhures. Nessa relação de violência, eles são homens e nós somos mulheres. É uma violência de gênero.

    Aliás, esse texto também é um convite para que esses homens se posicionem, percebam que o crime sexista como o crime racista ameaça a tod@s que projetam na capoeira um instrumento de libertação.  Contudo, essa reflexão dirige-se em primeiro lugar as manas. Porque sim, confesso, é com as mulheres que conto agora para que lutemos juntas contra a violência sexista.

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Christine Zonzon – é capoeirista, feminista, professora e pesquisadora (UFBA)

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