Ladainha: Você diz que é provedor

Minha mãe lá vem o homem

Minha filha deixa vir

Ai que não devo nada ao homem

Mas esse homem deve a mim

Ele diz que é provedor

Mas veja que provocação

Quando muito, pouco ajuda

Não tem participação

Mas homem é independente

Homem tem autonomia

Sua escolha é privilégio

Resultado é covardia

Só não me diga que é provedor

Que é chefe de família

Se não tá com a mamãe nem com a vó

Onde é que tá tua cria

Camarada

Contramestra Tatiana (Rio de Janeiro) 

Ladainha: Você diz que é provedor de Contramestra Tatiana

    As ladainhas de capoeira costumam contar histórias, casos, memórias dos capoeiristas e ecos do seu mundo. A ladainha também dá recado para os jogadores ou os participantes da roda numa linguagem própria, cheia de conotações, de ritmos e sotaques. Essa cantiga que inicia o ritual da roda retrata, evoca, avisa… entenda quem quiser e puder!

   A ladainha de Contramestra Tatiana do Rio de Janeiro lança mão de todos esses elementos da tradição, retomando a forma gozadora e satírica do protesto. Brincadeira e seriedade se entrelaçam maliciosamente nessa cantiga de fundamento ao tempo que essa tradição ancestral se abre para falar da nossa história: a história das mulheres que criam os seus filhos sem a ajuda dos pais; a história das capoeiristas que por vezes têm que abrir mão de treinar, jogar na roda ou participar de um evento porque o cuidado à “cria” é da sua responsabilidade exclusiva. As mulheres que são provedoras da família, provedoras do sustento e do afeto, sozinhas!

    Tatiana nos contou que escreveu essa ladainha em resposta a um Mestre da Bahia que declarou em uma palestra que o homem enquanto provedor da família é aquele que tem que cuidar da mulher. Ele diz que é provedor, que é chefe de família. Ora, além de propagar uma ideologia machista e conservadora que reserva para o homem uma posição dominante, essa afirmação não condiz em nada com a realidade que vivemos dentro e fora da capoeira. O que vivenciamos de fato é uma cultura hipócrita, cúmplice das múltiplas formas de opressão sofridas pelas mulheres. O abandono paterno é uma delas. E quando digo abandono, falo não somente dos homens que “dão o fora” quando suas companheiras engravidam, que se separam e esquecem dos filhos, mas também daqueles que se dizem pais mas delegam toda a responsabilidade para as mães.

    Ao longo das quase três décadas em que frequento as rodas de capoeira, raríssimas vezes vi um homem capoeirista com seus filhos, a não ser quando estes já cresceram e se tornaram membros do grupo.  Mas filhos/filhas pequenos/as? Onde estão? Com quem ficam? Quem os alimenta, troca, põe a dormir, cuida enquanto os capoeiristas estão jogando na roda todo final de semana ou participando de eventos que duram dias? Se não está com a mamãe nem a vó/Onde é que está tua cria, camaradinho?

    Conheci inúmeras mulheres na capoeira que sustentam seus filhos e filhas sozinhas. O pai, capoeirista, não raro mestre de capoeira, se exibe como modelo cheio de sabedoria. Modelo da reprodução machista…E nós…caladas. Não mais!

   Vamos contar/cantar a nossa história. Vamos debater, questionar e denunciar os privilégios. Se a capoeira é luta de emancipação, não pode ser ao custo da escravidão das mulheres.

 

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Christine Zonzon – é capoeirista, feminista, professora e pesquisadora (UFBA)

2 comentários em “Ladainha: Você diz que é provedor

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