Tradição e Gênero na Capoeira

“E a roda dos oito machos

Foi invadida por oitenta mulheres!

Invertemos a ordem

Chegamos ‘onde o engano se enganou’!

O mundo está de ponta cabeça,

Pensam consternados os guardiões da tradição.

Sim, respondem as feministas malvadas,

Vocês não sabiam que isto é a capoeira?

Iê Maria Felipa

Iê Marias Felipas.”

Criação coletiva Grupo de Estudos e Intervenção Marias Felipas.

Relato sobre a mesa Capoeira e Ancestralidade no FSM, Salvador, 2018

    A princípio, apesar de estarmos vivendo um momento de fortalecimento do movimento feminista em todo o mundo e também na capoeira, esta mesa seria composta por 8 homens, todos mestres. O tema a ser discutido seria Capoeira e Ancestralidade, mas posso afirmar que ao final o tema discutido foi Ancestralidade, Violência e a Luta feminista na capoeira.

    É importante lembrar que no dia anterior a esta mesa, quando ocorria outra mesa organizada pelas Marias Felipas, Mestre Duda (Lua Branca) convidou uma de nós para fazer parte da mesa sobre Ancestralidade, na qual ele seria um dos palestrantes, mas no momento, nenhuma de nós aceitou o convite.

    Quando cheguei à faculdade de Dança para assistir a mesa aqui descrita, mestre Duda refez o convite. Eu estava decidida a não aceitar, todavia parte do público, formado por muitas mulheres, pediram em alto e bom tom para que eu aceitasse o convite e representasse, naquele momento, as mulheres. Encarei o desafio confiante na força daquelas mulheres. Eu não estava só!

    Não posso dizer que foi fácil ouvir todos aqueles homens apresentarem suas falas e organizar ali no calor da hora uma apresentação que fizesse sentido dentro do tema a ser discutido e que ao mesmo tempo incorporasse nossas pautas feministas. Rapidamente rabisquei no papel parte da exposição que eu havia feito na mesa Outra roda é possível: Caladas nunca mais sobre histórias de violência de gênero na capoeira em Salvador, tentando articulá-la com a questão da ancestralidade que omite a presença das mulheres.

    Para tratar da violência de gênero na grande roda, eu trouxe alguns exemplos que aconteceram em Salvador envolvendo os capoeiras de outrora.

    Em um dos episódios contados, o capoeira Martins foi preso e processado por lesão corporal por ter ferido Margarida no ano de 1913. Em resumo, a história foi a seguinte: Martins ao chegar na casa de Margarida, não gostou de vê-la com outro homem, também capoeira, em seu quarto. Ele a ameaçou de violência e, depois a agrediu fisicamente por não ter conseguido exercer o domínio que ele achava que tinha sobre ela. Uma mistura e violência de gênero com violência machista.

    Existem outras histórias de violência de homens capoeiras contra mulheres, como o caso de Pedro Mineiro que foi preso pelo menos três vezes em Salvador no começo do século XX, por ter violentado mulheres com pedaço de pau, fio de ferro e também por ter quebrado o braço de uma delas. Todas as mulheres agredidas por ele eram suas companheiras.

    O segundo caso descrevia a morte do capoeirista Nagé, nos anos 1950, assassinado por cinco homens, durante um conflito. Na minha interpretação, o motivo desta briga (descrita no mais novo livro do saudoso historiador Frede Abreu) foi a afirmação de masculinidade, em outras palavras: provar quem era mais “macho”. E nesta batalha, Nagê morreu com uma facada na cabeça!

    Com este último exemplo, tentei mostrar que apesar das principais vítimas do machismo serem as mulheres, o machismo violenta, agride e mata também os homens!

    O objetivo principal da minha exposição foi mostrar que não há como negar que as violências de gênero, ainda hoje, cometidas por certas lideranças na capoeira (mestres, contramestres, professores) na grande roda (ou seja, no cotidiano, fora da roda) têm um impacto direto na pequena roda, uma vez que a capoeira é atualmente entendida como um instrumento de educação e cidadania. Neste sentido professores/as exercem um papel importante na formação dos/as capoeiristas e transmitem valores através de suas práticas e discursos.

    Além das mulheres sofrerem violência física dentro e fora das rodas de capoeira, destaquei que a violência contra as mulheres ocorre de forma simbólica quando músicas carregadas de valores machistas são cantadas na capoeira.

Ninguém nasce machista!

    Durante o debate as mulheres roubaram a cena! Muitas delas levantaram perguntas sobre a desigualdade de gênero na capoeira e contaram suas experiências de violência e de luta por igualdade na capoeira (teremos outra postagem sobre essa parte da mesa). Todavia os palestrantes pouco se manifestaram sobre as questões de gênero e violências sofridas pelas mulheres na capoeira. Destaco aqui a fala de mestre Duda que desabafou dizendo que realmente o machismo é nocivo também para os homens.

    É importante destacar que foi fundamental o papel das mulheres capoeiristas presentes na plateia – destaco a presença na contramestra Lilú, companheira de luta – para que eu pudesse estar ali denunciando a violência contra nós, mulheres na pequena e na grande roda. Cada olhar, cada gesto, sorriso, aplauso, suspiro chegavam como uma avalanche de coragem para que eu pudesse continuar falando sem medo. E foi realmente muito emocionante sentir o apoio do público (composto por mulheres e homens) quando encerrei minha fala afirmando a importância de deixarmos de ser coniventes e denunciarmos toda forma de violência na pequena e na grande roda.

    Por fim exigi a presença de Maria Felipa, Maria Doze Homens, Salomé, Júlia Fogareiras e tantas outras mestras ainda vivas na árvore genealógica da capoeira, reivindicando uma ancestralidade feminista na capoeiragem.

    Terminamos aquela mesa sobre Ancestralidade com uma roda de capoeira feminista (a convite de mestre Duda) e com a alma lavada – falo por nós mulheres – o coração em chamas e a certeza de que estamos juntas e que só assim Outra roda será de fato possível!

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Por: Adriana Albert Pimentinha – capoeirista, historiadora, professora, feminista e ativista.

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